segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Sangue Amaldiçoado - por Pedro Medeiros


O mundo é dos sacanas. O diabo sabe quantos socos dei em ponta de faca para descer tão baixo. Não peço para acreditarem na minha história, pois tal pretensão seria uma prova incontestável de demência. Não acreditem! Pouco me importo! Tenho minha consciência limpa e a maior convicção do meu perfeito juízo. Malditos aqueles que me julgaram louco! Sou um infeliz amaldiçoado.
Fui criado por uma família circense no mais nobre e rico circo europeu. Meu pai, um domador de leões irlandês e minha mãe, uma malabarista suíça, se amaram entre cordas bambas e jaulas com arcos em chamas. O casamento foi realizado durante uma apresentação. Minha mãe já estava me carregando no ventre há cinqüenta dias. A cerimônia era de grande expectativas para toda Londres- condes, almofadinhas e a imprensa lotava a nossa grande tenda -, mas Deus não nos deixa esquecer de seu cruel senso de humor. No truque do homem bomba, um anão de um metro e vinte vestido de palhaço é arremessado cinqüenta metros para pousar em uma grande rede de proteção. Mas naquela noite, a quantidade de pólvora foi colocada cinco vezes a mais do que o necessário por motivo desconhecido. O canhão vomitou tripas e vísceras em cada canto da tenda de quatrocentos metros quadrados, até na platéia.
As especulações dos jornais foram monumentais. Houveram investigações pela policia inglesa. Acontece que o anão envolveu-se até o pescoço com agiotas. Suspeitas não faltaram; mas evidencias, sim. Um ladrão qualquer que quase ninguém conhecia foi enforcado para satisfazer o senso de justiça da cidade.
Eu nasci com a família já arruinada em 1880. Um irlandês fracassado e alcoólatra, como pai; e uma mãe que ficou catatônica devido ao trauma que foi o escândalo do banho de suco de carne e ossos que arrasou com sua vida. Os animais do circo, que antes eram duas panteras negras, três onças pintadas, quatro leoas, cinco leões e um elefante indiano, foram substituídos por um grupo de poodles e porcos adestrados. Os anões partiram e formaram uma gangue de ladrões e assassinos. Os novos números do picadeiro se resumiam em um show de esquisitices com o homem elefante, a mulher barbada, o homem mais forte do mundo e a mulher mais gorda do mundo. Mas um pingo de dignidade ainda existia em nossa reduzida tenda. Thierry, irmão de minha mãe, era um ilusionista de técnica sofisticada e performance ousada. Enquanto meu pai descansava inconsciente no chiqueiro e minha mãe vivia nas profundezas de sua mente doente, Thierry me educou, além de me ensinar todos os raros truques de mágica que conhecia, inclusive os que inventara.
Após a morte de meu pai em 1896, vendemos o homem elefante para um anatomista, cujo nome não me recordo. O dinheiro foi o suficiente para internamos minha mãe em uma instituição decente. Thierry passou sua vida cuidando dela; eu troquei de nome, fugi para França e esqueci o meu passado. Vivi em um bairro boêmio de Paris chamado Montmartre, em uma pensão ao lado de um cabaré chamado Chat Noir, onde dançarinas dançam o cancan mais provocante que já admirei. Me sustentei com esmolas que ganhava fazendo truques de mágica nas praças do centro. Com duas caixas roxas de um metro e oitenta de altura e meio metro de largura, eu entrava em uma e saía da outra; também fazia transformações simples, como: transformar um baralho em um coelho, um coelho em fogo e o fogo em flores.
Em um ano, eu chamei a atenção de um caçador de talentos chamado Cassidy que resolveu investir em meu potencial. Ele me pagou aulas diárias com os melhores tipos diferentes de mágicos e mais um modesto salário para eu não fazer nada além de praticar. Eu treinava seis horas por dia até não conseguir mexer mais as mãos. Apesar de eu ter apenas dezessete anos e Cassidy apostar em meu futuro, eu tinha medo de falhar e todo aquele trabalho e dinheiro terem sido inúteis, até porque essa é uma área do entretenimento muito competitiva e incerta. Muitos bons ilusionistas nunca ganharam um ovo. Eu não queria ser um deles.
Depois de três anos, Cassidy contratou Adoriabelle, a francesa mais linda que já vi na vida, como minha ajudante e marcou minha primeira apresentação em um grande teatro. O público e os críticos ficaram estupefatos com o show e também com a minha assistente alta, magra, charmosa e capaz de fazer qualquer homem ficar de quatro e latir feito um poodle. O sucesso de nossa primeira noite nos garantiu datas em todos os teatros da cidade por um ano.
Foi durante um ensaio em um teatro vazio à noite enquanto estávamos sentados nos lugares da platéia que Adoriabelle me falou sorrindo e com a mão esquerda em meu joelho direito:
“Sim. Eu sei que não precisamos ensaiar mais do que já fizemos. E você deve ter achado estranho eu ter te pedido para vir a essa hora. Mas é que para mim, essa é uma ótima maneira de passar o tempo. Eu me divirto tanto com esses truques. E essa chuva me deixa triste e faz me sentir sozinha.”
Fiquei perplexo quando aquela adorável e bela mulher me disse que era capaz de se sentir triste e sozinha. Eu sempre fui solitário e, sinceramente, isso nunca me incomodou.
“Não posso mais agüentar te ver levando prostitutas para o seu quarto todas as noites. Acho que isso é ciúmes. Eu preciso saber se você nunca pensou em mim dessa maneira.”
Eu nunca havia pensado nela dessa maneira. Eu sempre a vi como uma predadora e não uma presa. Apesar de eu ser um pouco mais alto que ela e não poder ser considerado feio, nunca me interessei por uma relação amorosa, isso me parecia muito complicado e desnecessário. Já vi muitos grandes homens que enlouqueceram, se humilharam e afundaram nos vícios por causa de mulheres. Uma vez Cassidy me disse que uma menina de quinze anos pode acabar com qualquer homem de trinta. Por isso pagar profissionais em troca de prazer sempre me pareceu mais sadio do que esse vírus que chamam de amor. Nós transamos ali no teatro e nos casamos um ano depois.
A vida de casado foi tranqüila por um bom tempo. Compramos uma casa boa e longe dos cabarés, mas não muito longe das tavernas para o bem de minha saúde. O dia mais feliz da minha vida foi em que o meu filho, Jacques, nasceu. Criança saudável, curiosa, brincalhona e inteligente. Quando eu e Adoriabelle não estávamos brigando por asneiras, estávamos brincando com o recém-nascido.
Me lembro de uma das nossas mais trágicas brigas na nossa vida matrimonial. Depois de uma noite de bebedeira com um pintor desconhecido e delirante chamado de Van Gogh, eu comprei um de seus quadros extraordinários por uma mixaria. A pintura era uma família pobre comendo batatas em um barraco escuro. A minha mulher se assustava com aquele quadro, pois acreditava que a senhora da pintura que servia o chá olhava para ela sempre que entrava no meu escritório, “então não entre!” eu respondi cessando a discussão. Depois de alguns dias em que o assunto foi esquecido, ela voltou a reclamar do quadro. Ela não discutia comigo sobre o assunto, mas falava sozinha e em bom tom para eu ouvir as suas criticas artísticas todos os dias. Depois de ela me pedir mais algumas vezes para me livrar daquele quadro horroroso, ela passou a exigir e gritar:
“Eu juro que eu vou perder a cabeça se essa coisa continuar nessa casa!”
Como eu não gostei de sua atitude, me recusei a obedecer. Então ela começou a ter pesadelos e insônia. Adoriabelle me convenceu de que a pintura era a culpada de criar tanto terror em seu sono. Prometi contrariado em me livrar do quadro na noite seguinte, pois tínhamos um show para preparar antes das dez da noite em Londres.
Eu não tive nenhum tipo de familiaridade ou recordação quando retornei àquela capital em que havia crescido. Eu e minha esposa fomos ao teatro preparar nosso equipamento. Adoriabelle estava sendo querida e carinhosa comigo desde o inicio da viagem.
Aquela era a nossa primeira noite na Inglaterra. O público lotou aquele prestigioso teatro. No cartaz do show estava o meu retrato com dois diabinhos desenhados sentados em meus ombros sussurrando em meus ouvidos. Eu fui magnífico. Em todos os momentos, as pessoas ficaram espantadas, principalmente no truque final em que o pior aconteceu.
A última mágica era com uma guilhotina em que eu faria Adoriabelle desaparecer antes de ter a sua cabeça cortada. Malditamente três dispositivos de segurança falharam. Sua cabeça tombou no chão de madeira do palco com um ruído horrendo e rolou até o colo de uma senhora que na hora morreu de um ataque cardíaco. Dezenas de pessoas vomitaram.
Após a decapitação, não lembro de nada. Testemunhas afirmam que eu tive ataque de risos enquanto dizia repetidamente “O quadro fica aonde está!” A policia achou as três molas de segurança da guilhotina em meus bolsos. Amanhã serei enforcado. Hoje eu rezo para que meu filho não seja outra vitima da maldição de meus pais.

3 comentários:

  1. PEDRO SONY BOY HOVERCRAFT!!!!! Parabéns Pedro! Um conto de terror Vitoriano pra nem o Alan Poe botar defeito! Tá com a Mão Cheia!

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  2. ainda não tinha lido nem visitado teu blog.
    me surpreendi com a riquesa de detalhes que teus contos possuem.
    parabéns meu caro Petter Grass!

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  3. muito bom , primo. do caralho mesmo velho.. insano o final.. continua lendo e escrevendo sempre
    abracao do primo lipe

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