sexta-feira, 16 de abril de 2010

Terror Noturno por Pedro Medeiros


Acordei às 13 horas com uma puta dor de cabeça e um puto mau - humor. Fui para a cozinha com o chão cheio de cacos de vidros quebrados e as paredes cheias de mofo. Abri a geladeira e me servi das únicas duas coisas que havia dentro dela: Uma panela de arroz e três bifes. Após comer, lembrei-me da existência de uma garrafa de conhaque uma terça cheia em algum lugar em meio à bagunça do meu luxuoso JK. Abri o armário e nada! Olhei embaixo da cama e atrás da escrivaninha e nada! Não a encontrei em nenhuma das gavetas da minha cômoda e nem embaixo de qualquer uma das roupas sujas jogadas por todo o quarto. Eu me engasguei. A dor de cabeça aumentou. Meu estomago virou do avesso. Meus joelhos vacilaram bambos e trêmulos. Senti um desespero de gelar o sangue, uma agulha quente sendo enfiada em meu coração e as paredes do quarto me esmagando, corri para o banheiro e vomitei todo meu almoço acompanhado com ácido estomacal. Enfim, encontrei o conhaque dentro da banheira. O alívio foi tão grande que tive ataque de risos por vinte segundos. Matei a bebida em três goles servidos em diferentes doses consecutivas, me senti melhor, mas não muito... Preciso de férias, um bom seguro de vida e uma casa na praia, quando tudo o que tenho é um revólver que comprei semana passada para me suicidar, uma garrafa vazia e uma imensa e valiosa coleção de contas atrasadas e ameaças de despejo. Fraco e cheio de frustrações volto para a cama.

Acordei deitado num divã de couro marrom feito em madeira mogno e extremamente confortável em uma sala bem mobiliada com uma estante do tamanho da parede sul de madeira nobre pintada em preto lotada de livros, uma grande mesa de escritório quase no centro envernizada e polida e uma cadeira inclinada de muito bom gosto onde uma gostosa com pinta de estudante de psicologia me olhava por cima de óculos de graus enquanto mordia uma caneta com dentes brancos e lábios rosa. Uma loura de olhos claros quase transparentes, cílios e lábios grandes, dentes brancos e perfeitos e um olhar de uma gata mirando um rato momentos antes a refeição, vestida numa roupa de secretária com os dois botões de cima da blusa abertos, revelando boa parte de seus seios, não deixando muito pra imaginar. Mulheres desse tipo (fatais) sempre me deram a impressão da presença do perigo eminente, mas talvez seja porque eu tenha lido demais as histórias de detetives dos anos 50.
-Você está lidando com os seus problemas da maneira mais difícil. –Ela falava- Projetando a raiva em você mesmo.
-Em quem eu deveria projetá-la?- Perguntei.
Em seu colo repousava uma prancheta cheia de fotos de crianças em vestidos azuis mortas. Ela mostrava-me as fotos e perguntava:
-O que você vê?
Eu respondi todas as vezes:
-Sangue!
Ela escreveu na prancheta e disse:
-Interessante! Como você tem dormido?
-Chapado!
Ela levantou-se graciosamente, largou a prancheta e a caneta em cima da mesa, aproximou-se de mim rebolando sensualmente, então com toda a delicadeza que só as mulheres são capazes de simular furou os meus olhos com suas longas unhas vermelhas e me perguntou:
- E como você se sente?

Despertei gritando encharcado em suor tremendo de frio embaixo da cama. Rastejei alguns metros e levantei com dificuldade. Meu rádio relógio marca meia-noite. Pego um pé-de-cabra do armário, saio para o corredor do prédio, desço dois lances de escadas e chego ao térreo. Uso a ferramenta para forçar a fechadura do depósito da zeladoria que fica entre o estacionamento e o elevador em manutenção ao lado da portaria. Arrombo a porta com um pequeno esforço, entro e acendo a luz. Vejo meia dúzia de baratas correndo e se escondendo em buracos nas paredes. No chão havia material de pintura, produtos de limpeza, uma caixa de ferramentas, um saco de cimento, lâmpadas, vassouras, esfregões, etc. Escolhi uma lata de dois litros de solvente fechada e voltei para o conforto do meu cubículo.
Mais uma vez na solidão de meu refúgio, usei o mesmo canivete de mola que uso para assaltar idoso no centro para abrir a lata roubada. Mergulhei uma meia podre em seu conteúdo liquido e grosso. Aspirei a meia até anestesiar-me. Quando ela secava, eu repetia mecanicamente a ação até não conseguir mais me mexer.

Eu estava muito bem desperto e paralisado. Tentei me levantar com o esforço que só o horror obriga-nos a fazer e não consegui mexer um músculo. Após um tempo que pareceu ser uma eternidade e com uma força sobrenatural, levantei e caminhei até a porta com um desejo inexplicável de fugir daquele lugar. Estendi a mão em direção a maçaneta, cessei o movimento, olhei para o apartamento e avistei um cara de altura mediana, magro, cabelos escuros e bagunçados de camiseta regata e calça surrada deitado inconsciente no chão do quarto. Quando me dei conta percebi que estava de pé na entrada do apartamento olhando para o meu próprio corpo em torpor com uma meia na cara. Saio do quarto.
As paredes vazavam merda que enchia o corredor com profundidade de dez centímetros. As baratas cobriam todo o resto. E o fedor era insuportável. Nenhum esgoto da cidade seria pior do que aquele lugar naquele momento. E bem no meio de toda essa asquerosidade havia uma linda menina de oito anos num bonito vestido caseiro azul cheio de detalhes em fitas brancas. Seu longo cabelo castanho escuro parecia preto na escuridão do corredor. Seus olhos grandes e redondos parecidos com pérolas negras brilhavam mais do que qualquer outra jóia no fundo do mar. E o machado em suas mãos pingando sangue sujava ainda mais o seu vestido.
A garota largou o machado, correu em minha direção, agarrou minhas pernas com o máximo de força que conseguia com o seu pequeno abraço e disse:
-Mano! Eu sempre soube que te encontraria e tive tanto medo!
Caí de joelhos, segurei seus cabelos e chorei.

Acordei no chão do quarto ao meio-dia de ovo virado e nadando em vomito. Levantei tonto com a senhoria gritando e batendo na minha porta como se fosse arrebentá-la:
- Abra a porta, Javier! Eu sei que está aí e não irei a lugar algum antes de receber o meu dinheiro! Se não sair daí sozinho, sairá com a polícia, atrofiado filho da puta!
A senhoria é uma encantadora senhora alemã diabética, asmática, obesa, cardíaca, deficiente e peluda. Sempre imaginei fumaça saindo de sua respiração como se houvesse enxofre em seus pulmões. Ela nasceu com uma deficiência genética que impediu seu braço esquerdo e suas pernas se formarem completamente. Seu braço terminava no cotovelo onde se via pequenos dedos, e suas pernas de pau necessitavam de mais algumas mãos de verniz.
Deixei ela gritando no corredor e fui ao banheiro cuidar da minha higiene. A proprietária foi embora depois de uma hora. Enrolei um baseado, coloquei o disco Birth of the Cool do Miles Davis e me chapei. Após sete horas, quinze discos e seis baseados, ouvi passos de uma mulher usando salto alto subindo as escadas chegando ao meu andar. Abri a porta e a vi.
Sua beleza óbvia impedia qualquer pessoa de botar defeito. Seu lindo rosto inocente mataria qualquer anjo de inveja. Alta, magra e elegante. Vestia um vestido curto de verão. Seus seios sem sutiã estavam tão soltos quanto seus cabelos escuros. Seus grandes e brilhantes olhos eram-me familiares.
- Oi!- Ela disse quando reparou que eu estava observando-a.
- Olá! Está se mudando?
- Sim, estou. Me chamam de Seca.
- Sou Javier. Você está sozinha?
- Claro, eu prefiro assim.
- Pois não devia! Está lixeira não é apropriada para alguém como você.
Ela sorriu e respondeu:
-Bem... Vou aceitar isso como um elogio, Javier.
- Não passa de um bom conselho, talvez o melhor que alguém já tenha lhe dado. Toda semana vejo um infeliz ser esfaqueado da minha janela, brancos ou negros.
- Agradeço a preocupação – Seu olhar e seu sorriso me atordoaram. – Minhas coisas chegarão amanhã às quatro da tarde. Quer ser meu amigo e me ajudar a subir as caixas?
- Claro! – Respondi confuso.
- Obrigada! Até amanhã!
Seca entrou no apartamento 27 que fica em frente ao meu, fechou a sua porta e eu fechei a minha lembrando-me daquelas pérolas negras com cílios longos. Só havia visto olhos iguais uma vez há muito tempo atrás...

Era o meu aniversário de cinco anos, quando minha irmã, Julia, nasceu. Nessa época eu já sofria de uma enfermidade que os médicos chamam de Pavor Nocturnus, leigo: Terror Noturno. Tal mal é um raro fenômeno ameaçador durante o sono muito confundido com o sonambulismo, a diferença desse distúrbio é o comportamento eufórico e violento do doente acompanhados de falta de ar, agitação extrema, alucinações, gritos, comportamento destrutivo e amnésia. Suas causas ainda são desconhecidas, o mais acreditado é ser origem fisiológica e não psicológica. Seguidamente, levantei no meio da noite e embora estando quase que consciente, minha mente continuava presa em meio de pesadelos, geralmente acordava confuso, em pânico e acreditando que alguém estaria tentando me matar. Em alguns casos saí para a rua, andava de bicicleta até amanhecer e eu despertar completamente, inclusive quebrei o próprio braço certa vez.
Minha irmã possuía uma curiosa característica que chamava a atenção de todos que a conheciam: Seus olhos. Seus lindos, grandes, escuros e hipnotizantes olhos. Idênticos aos de Seca! Quando Julia ficava chateada ou era contrariada, mordia os beiços, cruzava os bracinhos e chorava espremendo suas lágrimas sem jamais fazer escândalo.
Julia tinha oito anos quando em um dos meus ataques de Terror Noturno a estrangulei até a morte em sua cama. Após a grande tragédia que foi tal acontecimento, dezenas de terapeutas me diagnosticaram e receitaram-me centenas de drogas pesadas. Meus pais começaram a me amarrar na cama toda a noite. Diziam que era para eu não me machucar, mas era evidente o medo que sentiam de mim. Então eu cresci. Eles disseram que existia algo de errado comigo (algo perturbador e misterioso). Aos dezesseis anos fui internado num hospital psiquiátrico e submetido à terapia de choque.
Fui torturado quatro anos naquele inferno. Matei um enfermeiro usando uma mola que arranquei de um dos colchões, roubei um punhado de morfina e fugi.

O dia seguinte foi um dos primeiro dias agradáveis que tive em toda a minha vida. Seca estava linda, vestida num vestido mais curto do que o do dia anterior. Que par de pernas celestiais! Duvido que exista beleza maior em todo o universo! E quem pensar o contrário não passa de uma bicha! Ajudei a subir todas suas caixas até seu apartamento, o que não foi pouca coisa. Só de livros eram cinco, e de roupas até perdi a conta. No meio da tarde mostrei a ela em que estava se metendo, apesar de toda a sordidez do bairro, ela pareceu se divertir com o passeio. No final da tarde subimos em seu apartamento. Ela serviu-me uma taça de vinho. Trocamos gracinhas, sorrisos, flertes, etc. Bebemos mais duas taças de vinho, três, quatro, cinco, seis, sete... Depois da oitava parei de contar. Seca podia ser caprichosa, delicada, meiga e linda como uma garotinha, mas bebia feito um estivador desempregado. E em menos de um dia, eu me apaixonei pela primeira vez. No final da noite, combinamos outro passeio pela cidade. Ela abriu a porta, disse tchau, deu-me um longo e ardente beijo, sorriu e fechou a porta. Eu atravessei o corredor e fui dormir na minha própria cama.
Sonhei com praças verdes, céus azuis, crianças brincando sorrindo nos balanços, nas gangorras e escorregadores. Sonhei com bolinhas de sabão e algodão doce. Sonhei com uma mulher magra e alta de olhos grandes e brilhantes. Sonhei com Seca e um piquenique na grama com salgadinhos, cerveja, maconha e cocaína.
O sonho acabou com um policial me sacudindo. Uma tropa levantou-me da cama e prenderam meus pulsos com algemas. A senhoria gritava palavras incompreensivas. A minha porta estava aberta e pude ver a porta da frente suja de sangue do apartamento no qual Seca tinha se mudado e uma trilha de sangue que vinha daquela porta número 27, atravessava o corredor e entrava no meu apartamento. Então percebi que meus sapatos, meus pés, minha calça e camiseta estavam tingidas de vermelho. Oficiais fizeram uma busca nas minhas coisas e encontraram maconha, um revólver carregado e nunca usado que não tenho licença para ter e o mais surpreendente foi achado em uma caixa de sapatos ao lado do meu armário: Uma faca e uma colher sujas com sangue coagulado juntas com um par de olhos grandes escuros que nunca mais brilhariam.