terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A Ratoeira por Pedro Medeiros


A chuva grossa junto com uma forte rajada de vento da madruga de uma quente quarta-feira de janeiro derrubara um pinheiro encima de um poste arrebentando cabos de eletricidade deixando o centro em quase completa escuridão e eletrocutando um morador de rua viciado em crack do tipo que fica gritando sobre o apocalipse segurando uma bíblia numa mão, um canivete na outra e um cachimbo no rabo. Ouvi-lo morrendo da janela do meu pequeno apartamento sem iluminação num prédio velho e descascado do centro. O seu grito visceral embrulhou meu estomago de forma que tive que sorver um copo de uísque para me sentir reconfortado. Desde o incidente no laboratório de drogas em que o meu parceiro Valcaregi virou um presunto junto com todos os fabricantes de heroína num prédio em chamas, aonde perdi a metade da minha cara por causa de um cuzão atrofiado com um frasco de ácido, fui afastado da policia e tenho me sustentado como um detetive particular, um caçador de recompensas e um alcoólatra de primeira categoria. Eu tinha a recém terminado de lubrificar minha espingarda calibre 12 que guardo embaixo da cama, quando as luzes do bairro apagaram. O telefone tocou embaixo de uma pilha de contas atrasadas e ameaças de despejos. Os negócios não andavam bem. Havia meses que não aparecia trabalho, nem sequer um fujão da condicional. O telefone tocou mais duas vezes, e sorvei mais três goles generosos da minha garrafa de água que passarinho não bebe.
“Alô!” Atendi.
“Sony Boy?” Uma voz sussurrada, trêmula e feminina do outro lado da linha me perguntou.
“O próprio! O que você quer?”
“O mesmo que você: ajuda! Preciso de um amigo, estou desesperada e você é o meu último recurso.”
“Isso me parece mais um trote, garota! Quem está falando?”
“Peruca Dourada. Lembra de mim, docinho?”
***
Peruca Dourada é uma mulher de costas quente e com uma vida cheia de problemas. Eu a conheci quando ainda era um novato na polícia e trabalhava como assistente do detetive Melou, que me ensinou tudo o que eu precisava saber para ser um bom investigador. Foi em um bar de jazz. Ela estava sendo presa por dois policiais, histérica e com os cabelos coberto de miolos. Ela foi julgada por usar uma cadeira para esmagar a cabeça de uma negra que cantava desafinadamente ao seu lado durante o show do estabelecimento. Peruca Dourada foi inocentada após testemunhas comprovarem o fato de que a negra realmente não sabia cantar. Isso foi há sete anos. O resto é história.
***
“Sim. Eu me lembro de você. Em que posso ajudá-la?”
“Não posso falar agora.”
“Gostaria de marcar uma consulta?”
“Não seja um babaca! Vá ao Bar do Russo.”
“Vá amanhã ao meu escritório para conversamos. Não aceito nenhum serviço antes de saber no que estou me metendo.”
“Isso não será possível. Sou seguida quase toda à hora e não posso me arriscar a ir muito longe. Encontre-me e ouça a minha proposta. Se você recusar te dou dinheiro para gasolina. O que você tem a perder? Não seja um covarde!” Ela disse antes de desligar na minha cara.

Um ex-policial visitar o Bar do Russo é tão perigoso como brincar de roleta russa. Carregue um revólver com apenas uma bala, gire o tambor, mire o cano na própria cabeça e aperte o gatilho. Talvez na primeira tentativa seja uma câmera vazia, e você escute um click metálico, mas a sorte é temporária, e cedo ou tarde aquela bala solitária entrará no seu cérebro. Olhei a bagunça do meu apartamento, as pilhas de contas e decidi que não tinha nada a perder mesmo. Vesti um sobretudo preto, guardei o meu fiel 38 carregado no bolso, calcei um par de sapatos, mamei um pouco na garrafa de whisky, botei meu chapéu velho, saí do prédio, entrei no meu Ford cinza e barulhento para dirigir rumo a uma dama em apuros.

O trânsito estava caótico; e a chuva, grossa. Estacionei a uma quadra de distância, e cheguei ao bar encharcado. Era meia-noite, e a luz ainda não havia voltado naquela região. Dentro do bar, velas no centro de cada mesa iluminavam o estabelecimento. Passei por um russo grande no balcão e por um grupo de jogadores de dados em uma mesa. As apostas eram altas, e os jogadores, desesperados. Passei por mais um grupo de bêbados e cheguei numa mesa de dois lugares em que uma mulher que aparentava ter quase trinta roia as unhas e cutucava o chão com o salto como um metrônomo marcando um ritmo de be bop.
“Credo! Você está horrível!" Ela exclamou ao ver as cicatrizes de queimadura de ácido que cobre toda a metade esquerda de meu rosto.
“Eu sei.” Eu disse.
"O que aconteceu com a tua cara?"
"Perdi num churrasco com os amigos."
"Entendo. Sente-se!" Ela empurrou a cadeira com o sapato, e eu sentei virado de frente para aquela mulher.
"Você veio armado?"
"Claro. Você veio sem calcinha?"
“Essa foi uma piada suja, meu amigo.”
“Peço desculpas. Não tenho andado em boas companhias. Acabo adquirindo maus hábitos. São ossos do oficio. Não quis estragar nosso encontro à luz de velas.”
Ela não achou graça e brincou com os pingos de cera derretida. Eu esperei a sua história. Ficamos em silêncio por dois minutos.
“Eu preciso sair da cidade. Não sei quando ou onde sou seguida pelos homens do Carne Viva. Ele é um animal perigoso, gordo e escroto... e eu sou casada com ele. Você já deve ter lido o nome Carne Viva nos jornais.”
“Sim. Eu acompanho o caderno policial.” Eu disse.
“Então você sabe que a recompensa por ele está em mil e quinhentos. Eu tenho informações o suficiente para pegarem ele e estou disposta a vendê-las por apenas quinhentas pratas. É uma pechinha e é pegar ou largar.”
“Conte a sua história. Se você me convencer o trato está feito.”
“Depois que minha mãe morreu e meu pai se matou quando eu tinha dezesseis anos, conheci Carne Viva botando a mão em seu bolso para roubar a sua carteira enquanto ele passava por mim na rua. Bem... Faltou-me destreza. Carne Viva agarrou meus braços e ao invés de me matar, me alimentou. Casei com ele quando fiz dezoito e fui fiel por oito anos. Não preciso te dizer o inferno que passei casada com aquele monstro. Apaixonei-me por um homem da minha idade que pediu para largar meu marido e casar com ele. Uma noite em que transava com Carne Viva, chamei o nome de meu amante. Fui espancada e trancada num armário por três dias. Uma semana depois soube que haviam matado o homem que eu amo. Isso foi há um ano e desde então decidi fugir.”
Ela suspirou cansada e acendeu um cigarro. Eu tomei um gole de uísque do meu cantil que guardo sempre no bolso do meu casaco.
“Desde que o Carne Viva matou aquele policial no bairro chinês há um mês, ele está escondido na rua 33 casa 52 no meio de uma plantação de melancias na estrada 12.” Ela disse.
Eu mal comecei a duvidar da sua história quando todas as velas do bar foram assopradas, deixando tudo em nossa volta escondido na escuridão. O flash de um raio iluminou uma turma com porretes se aproximando de nós. Antecipei uma cadeira voando em minha direção. Agarrei a cadeira no ar e a joguei de volta para as sombras. De repente a luz voltou milagrosamente no instante em que um russo gordo voava em minha direção. Eu me virei de lado, segurei a sua cabeça e bati com a sua cara no meio da mesa. O nariz do russo ficou pendurado por um pedaço de cartilagem. Acertei com a coronha do revólver na sua nuca, e ele desmaiou. Apontei para os outros quatro marginais que estavam cada vez mais pertos. Eles pararam. Da curta distância em que eles estavam de mim, eu poderia acertar dois se tivesse sorte, mas os outros dois seria uma briga muito difícil. Eles avançaram três passos.
“Pra trás filhas da puta!” Eu falei parecendo o mais durão que pude.
Eles ficaram assustados e recuaram. Quando eu já estava me sentindo o maioral vi a Peruca Dourada se postando ao meu lado com uma pequena pistola semi-automática cromada brilhando na sua mão.
“Pro chão, cachorrada!” Ela gritou. Todos obedeceram.
Saímos do bar chutando cabeças até todos dormirem.
“Eu vou escolher acreditar em você. Mas se eu souber que tu ta de sacanagem comigo, eu te caço, baby.”
Fomos no meu Ford até o meu escritório. Dei a ela 600 pratas que era todo o dinheiro que me restava. Ela me beijou ardentemente e foi embora. A Peruca Dourada falara a verdade. Carne Viva foi preso. Eu recebi a recompensa. Paguei minhas contas e gastei o resto com bebidas e em mulheres sem coração. Eu e Peruca Dourada nunca mais nos vimos. Ainda ouço o barulho de seu salto batendo na calçada.

2 comentários:

  1. OBRRRRAAAA PRRRRIMMMA!!!!! "GASTEI TODO MEU DINHEIRO COM BEBIDAS E MULHERES SEM CORAÇÃO!" NOS DIAS PERTO DO APOCALIPSE "GOLDEN PERUK" É O QUE NÃO FALTA!!!! PARABÉNS SONY BOYLE!

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