terça-feira, 24 de agosto de 2010

A Trapaceira - Mais uma aventura de Sony Boy




Era uma noite no meio de um inverno rigoroso cheio de neve numa cidade no meio do coração da América. O vento gelado corta a pele da cara de um jornaleiro ambulante que grita:
“Extra! Extra! Morre baterista de jazz no Morrison Hotel de Nova York sob curiosas e macabras circunstâncias! Leiam enquanto ainda está quente!”
Há poucas quadras daquele pequeno e mal agasalhado personagem, pessoas do pior tipo, cuja vida não passou de azar, aglomeram-se no bordel para fugir do frio e da solidão. A casa está lotada nessa noite de fumaça, conversas, risos, brigas, dançarinas tirando a roupa por gorjetas e uma banda chamada “Lap Dance” tocando um blues rasgado da melhor sonoridade com um piano velho, um saxofone e uma negra seminua cantando uma letra obscena. A luz do estabelecimento iluminara todo o ambiente de vermelho. O nome da casa é Blecaute Blues. A dona e cafetina se chama Alessandra Facada nas Costas, mulher de meia idade ainda atraente, ainda perigosa e muito esperta. Eu bebo um uísque feito na banheira de um dos contrabandistas mais quentes de Chicago enquanto penso:
“Ah, a insanidade! O que podemos dizer sobre a insanidade? Só duas coisas: ela pode matar e a outra eu não lembro. Maldita pancada na cabeça! Está tudo girando e escurecendo. Acorda merda! Não posso me dar o luxo de cair no sono nesse momento. Esse sangue que escorre da minha cabeça é quente e o sangue da minha boca é salgado. Acho que perdi um dente. É, certamente, eu perdi um dente.”
São duas horas da manhã quando o show da banda Lap Dance termina. Depois do incidente no laboratório de drogas que deformou a metade da minha cara, não tenho conseguindo transar nem pagando. As dançarinas e prostitutas do bar passam por mim como se eu fosse um fantasma. Eu não as culpo. Levaram meses para eu poder me olhar no espelho sem vomitar. O pequeno saxofonista fala com a Alessandra Facada nas Costas, atravessa a pista e senta-se à mesa em que estou de frente para mim. O músico em questão parecia nervoso, mas provavelmente tinha acabado de cheirar um monte de cocaína. Ele estava rangendo os dentes e tremia o corpo inteiro. Garoto bonito de cabelos pretos, vinte anos e as olheiras de alguém que nunca dorme.
-Olá, Sonny! Você a encontrou? - Ele me perguntou.
-Sim. Ela está morta. - Eu respondi acendendo um cigarro. O garoto ficou abalado. Sua expressão mudou como se estivesse mastigando merda. Seu nome é Little Peter, ele procurou a minha agência de investigação há um ano, após sua noiva, Marie, o abandonar por um contrabandista. Era um trabalho simples que bastava gastar um dia por semana para saber como ela estava. Isso, é claro, sem ela saber. Mas teve uma semana em que ela e o contrabandista chamado de Canino sumiram e não foi possível encontrá-los durante três meses até o dia de ontem depois que Little Peter recebeu um telegrama que dizia:
“Querido, sinto sua falta. Quero voltar pra você, mas preciso de dinheiro. Por favor, mande mil dólares. Se você não quiser mais me ver, eu entendo. Mas, por favor, mande o dinheiro mesmo assim. Sua M.”
-O que aconteceu? – Ele perguntou ainda mastigando merda. Eu me odiei nesse momento. Little Peter é um cara legal, embora fosse muito ingênuo e um tanto estúpido, ele realmente amava a moça. Desde a primeira vez em que falei com ele me solidarizei com seu caso, e é de partir o coração vê-lo sofrendo dessa maneira. Obviamente ele a queria de volta e me mandou para o endereço indicado para levar o dinheiro e se possível buscar Marie.
-O telegrama era uma falcatrua de um vigarista de baixa categoria. Ele arranjou uma garota parecida com a Marie. A princípio ele fingiu que não sabia de nada, mas após pressionar os dois ameaçando prendê-los por fraude, eles me deram o endereço do Canino. O nome do vigarista era John, a garota se chama Judy.
-Era John? – Little Peter perguntou.
- Ele morreu também. Não se preocupe. Irei explicar tudo exatamente como aconteceu. Eu deixei um policial cuidando do John e Judy e fui ao endereço dado com o plano de dizer que estava investigando um assalto a banco e como é comum um detetive tentar incriminar qualquer bandido por qualquer crime, Marie não saberia que ela estava sendo investigada, e como a descrição do assaltante é bem diferente do macaco do Canino ele não ficaria nervoso com a situação, mas ninguém atendeu. Então eu falei com a senhoria, ela abriu o apartamento e eu encontrei a Marie morta no chão da cozinha com apenas um olho roxo como ferimento. Voltei para o endereço do telegrama para ter um papo com John. Ele confessou ser amante da Marie e ele confessou ter planejado o golpe para terem dinheiro para fugirem do Canino. Porém antes de contar mais, Canino apareceu na janela do apartamento na escada de incêndio, deu dois tiros na cara de John e fugiu. Eu fui atrás dele trocando tiros por duas quadras. Quando nossas balas acabaram eu tentei dominá-lo no mano a mano, mas como pode ver acabei levando uma bela surra.
- Puta merda!
- Algumas horas depois Canino foi morto por dois policiais no cais.
-Puta merda! Não sobrou ninguém?
-Apenas Judy.
-O que essa aí tem de importante? Ela sabe de algo? Como Marie morreu?
-Ela foi envenenada.
-Puta merda! Por quem?
-Por ela mesma.
-Está me dizendo que foi suicídio?! Não! Isso é impossível! Ela era vaidosa demais para se matar. Aposto que foi a Judy! Aposto que ela tinha um caso com o John e quando descobriu que ele ia fugir com Marie, ela planejou tudo. Envenenou a Marie de forma que fizesse o Canino pensar que John fosse o culpado, sabendo que o Canino mataria John. Assim ela se vingaria dos dois em uma só jogada.
-Essa é uma teoria razoável, considerando o que você sabe até agora. Talvez você desse um detetive melhor do que eu. Por um tempo nós acreditamos nessa hipótese e seguramos Judy por algumas horas na delegacia. Até que chegou a autópsia. Marie estava sendo envenenada há dois meses e Judy estava cumprindo pena por prostituição até duas semanas atrás. Então tudo ficou claro. Marie havia feito isso, mas não pra acabar com a própria vida. Ela planejara o assassinato de Canino com John. Ela tomou o veneno em pequenas doses, aumentando-as gradativamente até acostumar seu organismo, assim quando fizesse a comida envenenada para Canino, a polícia não suspeitaria dela já que ela também teria se alimentado do mesmo prato, mas foi impaciente e aumentou demais a última dose.
-Puta merda! Essa é a pior história que eu já ouvi na vida.
-Sim. Não é nada bonita. É apenas a verdade crua. A vida é assim. Não há finais felizes nem uma lição de moral enfeitada. É tudo sujo, feio e triste. Sinto muito.
-Você fez o que devia ser feito. E por isso sou grato. Você está um trapo. Uma das garotas da casa já foi enfermeira. Vá para o meu quarto lá encima. Ela cuidará de você.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Terror Noturno por Pedro Medeiros


Acordei às 13 horas com uma puta dor de cabeça e um puto mau - humor. Fui para a cozinha com o chão cheio de cacos de vidros quebrados e as paredes cheias de mofo. Abri a geladeira e me servi das únicas duas coisas que havia dentro dela: Uma panela de arroz e três bifes. Após comer, lembrei-me da existência de uma garrafa de conhaque uma terça cheia em algum lugar em meio à bagunça do meu luxuoso JK. Abri o armário e nada! Olhei embaixo da cama e atrás da escrivaninha e nada! Não a encontrei em nenhuma das gavetas da minha cômoda e nem embaixo de qualquer uma das roupas sujas jogadas por todo o quarto. Eu me engasguei. A dor de cabeça aumentou. Meu estomago virou do avesso. Meus joelhos vacilaram bambos e trêmulos. Senti um desespero de gelar o sangue, uma agulha quente sendo enfiada em meu coração e as paredes do quarto me esmagando, corri para o banheiro e vomitei todo meu almoço acompanhado com ácido estomacal. Enfim, encontrei o conhaque dentro da banheira. O alívio foi tão grande que tive ataque de risos por vinte segundos. Matei a bebida em três goles servidos em diferentes doses consecutivas, me senti melhor, mas não muito... Preciso de férias, um bom seguro de vida e uma casa na praia, quando tudo o que tenho é um revólver que comprei semana passada para me suicidar, uma garrafa vazia e uma imensa e valiosa coleção de contas atrasadas e ameaças de despejo. Fraco e cheio de frustrações volto para a cama.

Acordei deitado num divã de couro marrom feito em madeira mogno e extremamente confortável em uma sala bem mobiliada com uma estante do tamanho da parede sul de madeira nobre pintada em preto lotada de livros, uma grande mesa de escritório quase no centro envernizada e polida e uma cadeira inclinada de muito bom gosto onde uma gostosa com pinta de estudante de psicologia me olhava por cima de óculos de graus enquanto mordia uma caneta com dentes brancos e lábios rosa. Uma loura de olhos claros quase transparentes, cílios e lábios grandes, dentes brancos e perfeitos e um olhar de uma gata mirando um rato momentos antes a refeição, vestida numa roupa de secretária com os dois botões de cima da blusa abertos, revelando boa parte de seus seios, não deixando muito pra imaginar. Mulheres desse tipo (fatais) sempre me deram a impressão da presença do perigo eminente, mas talvez seja porque eu tenha lido demais as histórias de detetives dos anos 50.
-Você está lidando com os seus problemas da maneira mais difícil. –Ela falava- Projetando a raiva em você mesmo.
-Em quem eu deveria projetá-la?- Perguntei.
Em seu colo repousava uma prancheta cheia de fotos de crianças em vestidos azuis mortas. Ela mostrava-me as fotos e perguntava:
-O que você vê?
Eu respondi todas as vezes:
-Sangue!
Ela escreveu na prancheta e disse:
-Interessante! Como você tem dormido?
-Chapado!
Ela levantou-se graciosamente, largou a prancheta e a caneta em cima da mesa, aproximou-se de mim rebolando sensualmente, então com toda a delicadeza que só as mulheres são capazes de simular furou os meus olhos com suas longas unhas vermelhas e me perguntou:
- E como você se sente?

Despertei gritando encharcado em suor tremendo de frio embaixo da cama. Rastejei alguns metros e levantei com dificuldade. Meu rádio relógio marca meia-noite. Pego um pé-de-cabra do armário, saio para o corredor do prédio, desço dois lances de escadas e chego ao térreo. Uso a ferramenta para forçar a fechadura do depósito da zeladoria que fica entre o estacionamento e o elevador em manutenção ao lado da portaria. Arrombo a porta com um pequeno esforço, entro e acendo a luz. Vejo meia dúzia de baratas correndo e se escondendo em buracos nas paredes. No chão havia material de pintura, produtos de limpeza, uma caixa de ferramentas, um saco de cimento, lâmpadas, vassouras, esfregões, etc. Escolhi uma lata de dois litros de solvente fechada e voltei para o conforto do meu cubículo.
Mais uma vez na solidão de meu refúgio, usei o mesmo canivete de mola que uso para assaltar idoso no centro para abrir a lata roubada. Mergulhei uma meia podre em seu conteúdo liquido e grosso. Aspirei a meia até anestesiar-me. Quando ela secava, eu repetia mecanicamente a ação até não conseguir mais me mexer.

Eu estava muito bem desperto e paralisado. Tentei me levantar com o esforço que só o horror obriga-nos a fazer e não consegui mexer um músculo. Após um tempo que pareceu ser uma eternidade e com uma força sobrenatural, levantei e caminhei até a porta com um desejo inexplicável de fugir daquele lugar. Estendi a mão em direção a maçaneta, cessei o movimento, olhei para o apartamento e avistei um cara de altura mediana, magro, cabelos escuros e bagunçados de camiseta regata e calça surrada deitado inconsciente no chão do quarto. Quando me dei conta percebi que estava de pé na entrada do apartamento olhando para o meu próprio corpo em torpor com uma meia na cara. Saio do quarto.
As paredes vazavam merda que enchia o corredor com profundidade de dez centímetros. As baratas cobriam todo o resto. E o fedor era insuportável. Nenhum esgoto da cidade seria pior do que aquele lugar naquele momento. E bem no meio de toda essa asquerosidade havia uma linda menina de oito anos num bonito vestido caseiro azul cheio de detalhes em fitas brancas. Seu longo cabelo castanho escuro parecia preto na escuridão do corredor. Seus olhos grandes e redondos parecidos com pérolas negras brilhavam mais do que qualquer outra jóia no fundo do mar. E o machado em suas mãos pingando sangue sujava ainda mais o seu vestido.
A garota largou o machado, correu em minha direção, agarrou minhas pernas com o máximo de força que conseguia com o seu pequeno abraço e disse:
-Mano! Eu sempre soube que te encontraria e tive tanto medo!
Caí de joelhos, segurei seus cabelos e chorei.

Acordei no chão do quarto ao meio-dia de ovo virado e nadando em vomito. Levantei tonto com a senhoria gritando e batendo na minha porta como se fosse arrebentá-la:
- Abra a porta, Javier! Eu sei que está aí e não irei a lugar algum antes de receber o meu dinheiro! Se não sair daí sozinho, sairá com a polícia, atrofiado filho da puta!
A senhoria é uma encantadora senhora alemã diabética, asmática, obesa, cardíaca, deficiente e peluda. Sempre imaginei fumaça saindo de sua respiração como se houvesse enxofre em seus pulmões. Ela nasceu com uma deficiência genética que impediu seu braço esquerdo e suas pernas se formarem completamente. Seu braço terminava no cotovelo onde se via pequenos dedos, e suas pernas de pau necessitavam de mais algumas mãos de verniz.
Deixei ela gritando no corredor e fui ao banheiro cuidar da minha higiene. A proprietária foi embora depois de uma hora. Enrolei um baseado, coloquei o disco Birth of the Cool do Miles Davis e me chapei. Após sete horas, quinze discos e seis baseados, ouvi passos de uma mulher usando salto alto subindo as escadas chegando ao meu andar. Abri a porta e a vi.
Sua beleza óbvia impedia qualquer pessoa de botar defeito. Seu lindo rosto inocente mataria qualquer anjo de inveja. Alta, magra e elegante. Vestia um vestido curto de verão. Seus seios sem sutiã estavam tão soltos quanto seus cabelos escuros. Seus grandes e brilhantes olhos eram-me familiares.
- Oi!- Ela disse quando reparou que eu estava observando-a.
- Olá! Está se mudando?
- Sim, estou. Me chamam de Seca.
- Sou Javier. Você está sozinha?
- Claro, eu prefiro assim.
- Pois não devia! Está lixeira não é apropriada para alguém como você.
Ela sorriu e respondeu:
-Bem... Vou aceitar isso como um elogio, Javier.
- Não passa de um bom conselho, talvez o melhor que alguém já tenha lhe dado. Toda semana vejo um infeliz ser esfaqueado da minha janela, brancos ou negros.
- Agradeço a preocupação – Seu olhar e seu sorriso me atordoaram. – Minhas coisas chegarão amanhã às quatro da tarde. Quer ser meu amigo e me ajudar a subir as caixas?
- Claro! – Respondi confuso.
- Obrigada! Até amanhã!
Seca entrou no apartamento 27 que fica em frente ao meu, fechou a sua porta e eu fechei a minha lembrando-me daquelas pérolas negras com cílios longos. Só havia visto olhos iguais uma vez há muito tempo atrás...

Era o meu aniversário de cinco anos, quando minha irmã, Julia, nasceu. Nessa época eu já sofria de uma enfermidade que os médicos chamam de Pavor Nocturnus, leigo: Terror Noturno. Tal mal é um raro fenômeno ameaçador durante o sono muito confundido com o sonambulismo, a diferença desse distúrbio é o comportamento eufórico e violento do doente acompanhados de falta de ar, agitação extrema, alucinações, gritos, comportamento destrutivo e amnésia. Suas causas ainda são desconhecidas, o mais acreditado é ser origem fisiológica e não psicológica. Seguidamente, levantei no meio da noite e embora estando quase que consciente, minha mente continuava presa em meio de pesadelos, geralmente acordava confuso, em pânico e acreditando que alguém estaria tentando me matar. Em alguns casos saí para a rua, andava de bicicleta até amanhecer e eu despertar completamente, inclusive quebrei o próprio braço certa vez.
Minha irmã possuía uma curiosa característica que chamava a atenção de todos que a conheciam: Seus olhos. Seus lindos, grandes, escuros e hipnotizantes olhos. Idênticos aos de Seca! Quando Julia ficava chateada ou era contrariada, mordia os beiços, cruzava os bracinhos e chorava espremendo suas lágrimas sem jamais fazer escândalo.
Julia tinha oito anos quando em um dos meus ataques de Terror Noturno a estrangulei até a morte em sua cama. Após a grande tragédia que foi tal acontecimento, dezenas de terapeutas me diagnosticaram e receitaram-me centenas de drogas pesadas. Meus pais começaram a me amarrar na cama toda a noite. Diziam que era para eu não me machucar, mas era evidente o medo que sentiam de mim. Então eu cresci. Eles disseram que existia algo de errado comigo (algo perturbador e misterioso). Aos dezesseis anos fui internado num hospital psiquiátrico e submetido à terapia de choque.
Fui torturado quatro anos naquele inferno. Matei um enfermeiro usando uma mola que arranquei de um dos colchões, roubei um punhado de morfina e fugi.

O dia seguinte foi um dos primeiro dias agradáveis que tive em toda a minha vida. Seca estava linda, vestida num vestido mais curto do que o do dia anterior. Que par de pernas celestiais! Duvido que exista beleza maior em todo o universo! E quem pensar o contrário não passa de uma bicha! Ajudei a subir todas suas caixas até seu apartamento, o que não foi pouca coisa. Só de livros eram cinco, e de roupas até perdi a conta. No meio da tarde mostrei a ela em que estava se metendo, apesar de toda a sordidez do bairro, ela pareceu se divertir com o passeio. No final da tarde subimos em seu apartamento. Ela serviu-me uma taça de vinho. Trocamos gracinhas, sorrisos, flertes, etc. Bebemos mais duas taças de vinho, três, quatro, cinco, seis, sete... Depois da oitava parei de contar. Seca podia ser caprichosa, delicada, meiga e linda como uma garotinha, mas bebia feito um estivador desempregado. E em menos de um dia, eu me apaixonei pela primeira vez. No final da noite, combinamos outro passeio pela cidade. Ela abriu a porta, disse tchau, deu-me um longo e ardente beijo, sorriu e fechou a porta. Eu atravessei o corredor e fui dormir na minha própria cama.
Sonhei com praças verdes, céus azuis, crianças brincando sorrindo nos balanços, nas gangorras e escorregadores. Sonhei com bolinhas de sabão e algodão doce. Sonhei com uma mulher magra e alta de olhos grandes e brilhantes. Sonhei com Seca e um piquenique na grama com salgadinhos, cerveja, maconha e cocaína.
O sonho acabou com um policial me sacudindo. Uma tropa levantou-me da cama e prenderam meus pulsos com algemas. A senhoria gritava palavras incompreensivas. A minha porta estava aberta e pude ver a porta da frente suja de sangue do apartamento no qual Seca tinha se mudado e uma trilha de sangue que vinha daquela porta número 27, atravessava o corredor e entrava no meu apartamento. Então percebi que meus sapatos, meus pés, minha calça e camiseta estavam tingidas de vermelho. Oficiais fizeram uma busca nas minhas coisas e encontraram maconha, um revólver carregado e nunca usado que não tenho licença para ter e o mais surpreendente foi achado em uma caixa de sapatos ao lado do meu armário: Uma faca e uma colher sujas com sangue coagulado juntas com um par de olhos grandes escuros que nunca mais brilhariam.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Filho do Açougueiro por Pedro Medeiros


À meia-noite em uma fria sexta-feira 13 em um cemitério infestado de corvos e ratos em Londres, o vulto de um homem alto e muito magro de cartola e vestindo um longo sobretudo escuro caminha apressadamente entre as lápides e a neblina da madrugada que impede qualquer pessoa de enxergar qualquer coisa a mais de dois metros de distancia. O homem passa por um velho coveiro dormindo dentro de uma cova abraçado a uma garrafa de dois litros vazia e diz para si mesmo “Ah... A embriaguez: o sono dos justos e mal amados!” Ele atravessa o cemitério e entra em uma catedral gótica de arquitetura monumental- cheia de estátuas de gárgulas e uma imensa escadaria que dava numa pesada porta de madeira e ferro de três metros de altura e três metros de largura-. O interior da catedral impressionaria qualquer ser - humano tanto quanto um anão vestido de palhaço matando oito pessoas a sangue frio. O ar pesado e o cheiro de velas opressivo e solene deram a impressão ao visitante noturno de Deus estar ali mesmo observando e julgando. O homem alto caminhou até o final do tapete vermelho que vai da entrada ao altar onde um padre idoso e um pouco acima do peso com a boca e os dentes roxos e as bochechas vermelhas, cabelos brancos, vestido numa toga amarrada na cintura por uma corda de náilon mamava uma garrafa de vinho quase vazia.
“Seja bem vindo à casa de Deus! Aceita um sanguezinho do filho dele? Hehehe!” O padre disse balançando a garrafa para o homem que entrara. O aspecto do visitante era a de um homem doente e cansado. Ele estava extremamente pálido, olheiras profundas e roxas, tremia nervosamente e tinha um tique nervoso que contrai sua narina direita e faz seu olho piscar involuntariamente. Usava calças curtas demais que acabam antes dos tornozelos e expunha suas peúgas velhas, sua cartola toda remendada revelava-se em péssimo estado, assim também como suas mãos cheias de cicatrizes.
“Eu vim para me confessar, padre.” O visitante disse.
O padre largou a garrafa e falou vestindo o capuz: “Muito bem, meu jovem. Acompanhe-me!”
O homem seguiu o vigário. Ele não gostou de entrar no confessionário. Sentiu-se sufocando dentro daquele pequeno espaço.
“Quando foi a última vez que você se confessou, meu filho?” O padre perguntou através da tela de madeira.
“Na última vez que me confessei eu tinha cinco anos, portanto faz trinta e cinco anos.”
“Bem... Comece do início!” O sacerdote suspirou.
“Eu cresci nessa cidade em um bairro pobre. Meu pai me odiou desde o dia em que eu nasci e minha mãe morreu momentos após o parto. O velho me culpou a vida inteira por eu ter sido a causa da morte da mulher que ele amava e era dono de um açougue chamado Carnificina. O mais perto que já cheguei de ter um amigo era um criado seu chamado Charles. Eu assistia Charles trabalhando por horas todos os dias e ajudava-o a abater os porcos e a abri-los. Eu me divertia muito com ele e às vezes cheguei a sentir-me feliz em sua companhia. Ele tinha vinte anos e eu sete quando ladrões de treze anos me obrigaram a comer merda. Charles venceu o líder da gangue em uma briga de facas para me proteger de mais perseguições, mas o grupo se vingou. Eles mataram meu companheiro, o jogaram dentro de um saco de lixo cheio de merda e deram para os porcos comerem enquanto eu presenciava toda a atrocidade. Após a morte de seu criado, cuja culpa foi minha, o meu pai autoritário alterou-se para um psicopata. Suas agressões contra mim intensificaram. Passou a me surrar todos os dias com todos os tipos diferentes de facas que um açougueiro possui. Inclusive me trancar por dias em um armário cheio de restos não aproveitáveis de porcos foi uma de suas crueldades. Fui obrigado pela fome a me alimentar daquelas carcaças repugnantes. Quando completei dezoito anos eu matei o filho-da-puta no seu próprio açougue com suas mesmas ferramentas que ele usara tantas vezes contra mim.”
“Seus pecados são atrozes, mas Deus...” O sacerdote tentou falar.
“Não me interrompa, padre! Eu não terminei ainda.”
O padre suspirou. O filho do açougueiro continuou sua narrativa:
“Aos meus vinte anos, apaixonei-me por uma linda prostituta. Seu nome era Mary Ann. Todo o dinheiro que eu roubava, eu usava para comprar uma parcela de seu amor. E que mulher! Ela faria um padre defecar no chapéu do papa em troca de alguns minutos de prazer HEHEHEHE...(risadas sacanas) Mulher alta, graciosa, esbelta, com um par de pernas, seios e bunda magníficos! Depois de algum tempo ela começou a demonstrar afeto por mim e às vezes em que eu não tinha dinheiro ela não me cobrava pelo seu corpo. Eu quis tirar ela da vida de burlescos e estou certo de que a amava, portanto pedi sua mão em casamento na minha pequena cabana. Ela recusou todas as minhas investidas. Então eu senti o demônio da perversidade possuindo a minha alma pela segunda vez. Eu matei a Mary Ann, esquartejei-a e joguei o seu coração na fornalha. Me senti muito bem e desde então não expulsei mais o diabo sobre o meu controle. Continuei a praticar o esquartejamento em outras meretrizes. Charles me ensinara muito bem seu ofício. Ainda hoje a natureza de meus crimes é um mistério. E o meu trabalho precisamente cirúrgico foi mundialmente reconhecido e temido. Crianças tem pesadelos com meus crimes, outros aspirantes à fama tentam me imitar, os melhores detetives da Europa são atormentados com frustrações e fracassos em suas investigações e os jornais me chamam de Jack The Ripper! Os meus crimes foram todos perfeitos. Nunca me descobririam. Durante longos anos habituei-me ao deleite da certeza de minha segurança. Mas gradativamente o meu prazer se tornou uma idéia perseguidora que me atormentou por noites sem dormir. Era um pensamento obsessivo em minha mente que me enchia de temores. Seguidas vezes me flagrei dizendo em voz alta “Não vão me descobrir!”
Outro dia em que murmurei as mesmas palavras, uma voz que eu já ouvira antes (a voz do demônio) sussurrou em meu ouvido “Desde que você não faça a burrice de se confessar” No momento que ouvi tais palavras o pânico possuiu o meu coração. Comecei a correr mordendo a minha língua sem saber para aonde estava indo. Antes que eu percebesse eu estava numa delegacia confessando todos os meus pecados. Mas o que mais me atormentou foi o fato de que riram de mim. Jack The Ripper é uma lenda e muitos malucos querem que acreditem ou realmente acreditam serem tal entidade. Parecia que eu estava dizendo que era o Napoleão Bonaparte! Padre, você tem que me ajudar!”
“SEU MALDITO!!!! EU O CONDENO AO INFERNO!” O vigário respondeu possuído por uma ira divina.
“Obrigado! Eu sabia que o senhor entenderia.”

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A Ratoeira por Pedro Medeiros


A chuva grossa junto com uma forte rajada de vento da madruga de uma quente quarta-feira de janeiro derrubara um pinheiro encima de um poste arrebentando cabos de eletricidade deixando o centro em quase completa escuridão e eletrocutando um morador de rua viciado em crack do tipo que fica gritando sobre o apocalipse segurando uma bíblia numa mão, um canivete na outra e um cachimbo no rabo. Ouvi-lo morrendo da janela do meu pequeno apartamento sem iluminação num prédio velho e descascado do centro. O seu grito visceral embrulhou meu estomago de forma que tive que sorver um copo de uísque para me sentir reconfortado. Desde o incidente no laboratório de drogas em que o meu parceiro Valcaregi virou um presunto junto com todos os fabricantes de heroína num prédio em chamas, aonde perdi a metade da minha cara por causa de um cuzão atrofiado com um frasco de ácido, fui afastado da policia e tenho me sustentado como um detetive particular, um caçador de recompensas e um alcoólatra de primeira categoria. Eu tinha a recém terminado de lubrificar minha espingarda calibre 12 que guardo embaixo da cama, quando as luzes do bairro apagaram. O telefone tocou embaixo de uma pilha de contas atrasadas e ameaças de despejos. Os negócios não andavam bem. Havia meses que não aparecia trabalho, nem sequer um fujão da condicional. O telefone tocou mais duas vezes, e sorvei mais três goles generosos da minha garrafa de água que passarinho não bebe.
“Alô!” Atendi.
“Sony Boy?” Uma voz sussurrada, trêmula e feminina do outro lado da linha me perguntou.
“O próprio! O que você quer?”
“O mesmo que você: ajuda! Preciso de um amigo, estou desesperada e você é o meu último recurso.”
“Isso me parece mais um trote, garota! Quem está falando?”
“Peruca Dourada. Lembra de mim, docinho?”
***
Peruca Dourada é uma mulher de costas quente e com uma vida cheia de problemas. Eu a conheci quando ainda era um novato na polícia e trabalhava como assistente do detetive Melou, que me ensinou tudo o que eu precisava saber para ser um bom investigador. Foi em um bar de jazz. Ela estava sendo presa por dois policiais, histérica e com os cabelos coberto de miolos. Ela foi julgada por usar uma cadeira para esmagar a cabeça de uma negra que cantava desafinadamente ao seu lado durante o show do estabelecimento. Peruca Dourada foi inocentada após testemunhas comprovarem o fato de que a negra realmente não sabia cantar. Isso foi há sete anos. O resto é história.
***
“Sim. Eu me lembro de você. Em que posso ajudá-la?”
“Não posso falar agora.”
“Gostaria de marcar uma consulta?”
“Não seja um babaca! Vá ao Bar do Russo.”
“Vá amanhã ao meu escritório para conversamos. Não aceito nenhum serviço antes de saber no que estou me metendo.”
“Isso não será possível. Sou seguida quase toda à hora e não posso me arriscar a ir muito longe. Encontre-me e ouça a minha proposta. Se você recusar te dou dinheiro para gasolina. O que você tem a perder? Não seja um covarde!” Ela disse antes de desligar na minha cara.

Um ex-policial visitar o Bar do Russo é tão perigoso como brincar de roleta russa. Carregue um revólver com apenas uma bala, gire o tambor, mire o cano na própria cabeça e aperte o gatilho. Talvez na primeira tentativa seja uma câmera vazia, e você escute um click metálico, mas a sorte é temporária, e cedo ou tarde aquela bala solitária entrará no seu cérebro. Olhei a bagunça do meu apartamento, as pilhas de contas e decidi que não tinha nada a perder mesmo. Vesti um sobretudo preto, guardei o meu fiel 38 carregado no bolso, calcei um par de sapatos, mamei um pouco na garrafa de whisky, botei meu chapéu velho, saí do prédio, entrei no meu Ford cinza e barulhento para dirigir rumo a uma dama em apuros.

O trânsito estava caótico; e a chuva, grossa. Estacionei a uma quadra de distância, e cheguei ao bar encharcado. Era meia-noite, e a luz ainda não havia voltado naquela região. Dentro do bar, velas no centro de cada mesa iluminavam o estabelecimento. Passei por um russo grande no balcão e por um grupo de jogadores de dados em uma mesa. As apostas eram altas, e os jogadores, desesperados. Passei por mais um grupo de bêbados e cheguei numa mesa de dois lugares em que uma mulher que aparentava ter quase trinta roia as unhas e cutucava o chão com o salto como um metrônomo marcando um ritmo de be bop.
“Credo! Você está horrível!" Ela exclamou ao ver as cicatrizes de queimadura de ácido que cobre toda a metade esquerda de meu rosto.
“Eu sei.” Eu disse.
"O que aconteceu com a tua cara?"
"Perdi num churrasco com os amigos."
"Entendo. Sente-se!" Ela empurrou a cadeira com o sapato, e eu sentei virado de frente para aquela mulher.
"Você veio armado?"
"Claro. Você veio sem calcinha?"
“Essa foi uma piada suja, meu amigo.”
“Peço desculpas. Não tenho andado em boas companhias. Acabo adquirindo maus hábitos. São ossos do oficio. Não quis estragar nosso encontro à luz de velas.”
Ela não achou graça e brincou com os pingos de cera derretida. Eu esperei a sua história. Ficamos em silêncio por dois minutos.
“Eu preciso sair da cidade. Não sei quando ou onde sou seguida pelos homens do Carne Viva. Ele é um animal perigoso, gordo e escroto... e eu sou casada com ele. Você já deve ter lido o nome Carne Viva nos jornais.”
“Sim. Eu acompanho o caderno policial.” Eu disse.
“Então você sabe que a recompensa por ele está em mil e quinhentos. Eu tenho informações o suficiente para pegarem ele e estou disposta a vendê-las por apenas quinhentas pratas. É uma pechinha e é pegar ou largar.”
“Conte a sua história. Se você me convencer o trato está feito.”
“Depois que minha mãe morreu e meu pai se matou quando eu tinha dezesseis anos, conheci Carne Viva botando a mão em seu bolso para roubar a sua carteira enquanto ele passava por mim na rua. Bem... Faltou-me destreza. Carne Viva agarrou meus braços e ao invés de me matar, me alimentou. Casei com ele quando fiz dezoito e fui fiel por oito anos. Não preciso te dizer o inferno que passei casada com aquele monstro. Apaixonei-me por um homem da minha idade que pediu para largar meu marido e casar com ele. Uma noite em que transava com Carne Viva, chamei o nome de meu amante. Fui espancada e trancada num armário por três dias. Uma semana depois soube que haviam matado o homem que eu amo. Isso foi há um ano e desde então decidi fugir.”
Ela suspirou cansada e acendeu um cigarro. Eu tomei um gole de uísque do meu cantil que guardo sempre no bolso do meu casaco.
“Desde que o Carne Viva matou aquele policial no bairro chinês há um mês, ele está escondido na rua 33 casa 52 no meio de uma plantação de melancias na estrada 12.” Ela disse.
Eu mal comecei a duvidar da sua história quando todas as velas do bar foram assopradas, deixando tudo em nossa volta escondido na escuridão. O flash de um raio iluminou uma turma com porretes se aproximando de nós. Antecipei uma cadeira voando em minha direção. Agarrei a cadeira no ar e a joguei de volta para as sombras. De repente a luz voltou milagrosamente no instante em que um russo gordo voava em minha direção. Eu me virei de lado, segurei a sua cabeça e bati com a sua cara no meio da mesa. O nariz do russo ficou pendurado por um pedaço de cartilagem. Acertei com a coronha do revólver na sua nuca, e ele desmaiou. Apontei para os outros quatro marginais que estavam cada vez mais pertos. Eles pararam. Da curta distância em que eles estavam de mim, eu poderia acertar dois se tivesse sorte, mas os outros dois seria uma briga muito difícil. Eles avançaram três passos.
“Pra trás filhas da puta!” Eu falei parecendo o mais durão que pude.
Eles ficaram assustados e recuaram. Quando eu já estava me sentindo o maioral vi a Peruca Dourada se postando ao meu lado com uma pequena pistola semi-automática cromada brilhando na sua mão.
“Pro chão, cachorrada!” Ela gritou. Todos obedeceram.
Saímos do bar chutando cabeças até todos dormirem.
“Eu vou escolher acreditar em você. Mas se eu souber que tu ta de sacanagem comigo, eu te caço, baby.”
Fomos no meu Ford até o meu escritório. Dei a ela 600 pratas que era todo o dinheiro que me restava. Ela me beijou ardentemente e foi embora. A Peruca Dourada falara a verdade. Carne Viva foi preso. Eu recebi a recompensa. Paguei minhas contas e gastei o resto com bebidas e em mulheres sem coração. Eu e Peruca Dourada nunca mais nos vimos. Ainda ouço o barulho de seu salto batendo na calçada.