terça-feira, 20 de outubro de 2009

Morto de Sorte - por Pedro Medeiros



Pelas ruas do bairro Sargenópolis da cidade Baixa caminhava um homem negro solitário de chapéu preto com a aba aterrada na cara, a gola de seu casaco preto estava levantada até seu queixo, as bainhas de sua calça preta estavam rasgadas e seus sapatos pretos eram novos e pertenciam a um morto. O 38 carregado coçava em seu cóccix. Estava chovendo, ventando e era noite de natal. As calçadas estavam infestadas de mendigos, crianças aleijadas, travestis, lixo e macumba.
O homem negro dobrou à direita em uma rua sem saída. O beco tinha cinco metros de extensão concluídos por um muro de tijolos manchados com sangue seco e cinco metros de largura separando um motel à direita e uma pensão de mexicanos à esquerda. Entre as latas e sacos de lixo da pensão ilegal havia uma porta de ferro enferrujado e um gato preto deliciando um rato cinza.
O homem sorriu. Era tudo que precisava: mais alguns anos de azar. Pisou na cabeça do gato, esmagando seu crânio no chão de cimento e bateu sete vezes na porta. Uma pequena janela de correr abriu mostrando um par cínico de olhos apertados.
- Quem é você? E o que quer? – Perguntou o par de olhos apertados.
- Sou o Coveiro. Vim lavar a minha roupa suja – Respondeu ainda com o mesmo sorriso ao executar o gato vira-lata.
A janela fechou e a porta de ferro abriu.
O Coveiro negro, encardido e sujo entrou na sala deixando pegadas vermelhas com miolos de gato no piso de quadrados brancos com pretos. Não havia janela. A única iluminação vinha de uma lâmpada de cem watts, do outro lado da sala havia uma porta de madeira, um sofá mofado na parede oeste e uma mesa de pôquer no centro. O homem que abrira a porta era alto e magro.
- Merda! Perdi todas as minhas fichas! – Disse ele sentando no sofá abrindo um jornal.
Ainda com o mesmo sorriso cretino Coveiro permaneceu em pé ao lado da mesa aonde dois homens jogavam cartas e percebeu que as fichas eram buchas de cocaína.
- Olá, Carraspana! – Coveiro disse ainda com o mesmo sorriso.
- Coveiro, meu querido! Ainda bem que o senhor veio! Acho que você e o Loiro já se conhecem. – Disse ele apontando para o homem magro no sofá com o canto dos olhos.
Mesmo sentado, Carraspana era um homem muito grande e muito forte, parecia estar de bom humor mesmo perdendo para um baixinho, magrinho, tipo nervoso. Pois é... Seu pequeno adversário estava com quase todas as fichas do jogo e estava mesmo muito nervoso ou até mesmo com muito medo, ele tremia e suava enquanto embaralhava as cartas para uma nova rodada. O jogo estava no final.
- Claro. Assaltamos a mesma loja de bebidas por engano. Enquanto trocava-mos alguns socos, os funcionários sacaram revolveres e espingardas. Juntos acabamos com cinco judeus. Loiro é impressionante com sua bereta. Acerta uma moeda de olhos fechados!
Loiro riu e disse ainda lendo seu jornal:
- E você tem um soco e tanto. Meu queixo ficou durinho como cu de freira.
- Eu estava usando um soco inglês. – Coveiro gargalhou. – Você sabe... São ossos do ofício.
- Claro. Depois enchemos a cara de whisky irlandês, fizemos mais alguns assaltos e matamos uns japas.
- Que bom! Então somos todos amigos aqui! – Carraspana concluiu. – E esse rapaz que está me dando uma surra nas cartas é o Baixinho. Ele vem da Interionópis de uma família colona. Quando ele estava na cidade morrendo de fome na ruela do esgoto, eu dei a ele lugar no nosso pequeno bando. Tive que ensiná-lo a fazer tudo. Fora fazer canha caseira e plantar batata, ele não sabia nem atirar com um estilingue.
- Eae. – Coveiro murmurou para o Baixinho que não respondeu.
- O problema dele é não estar acostumado com a nossa situação atual. Sabe, é muita pressão. Estamos escondidos nesse buraco há alguns meses, e esse guri é muito novo para agüentar o confinamento e eu tenho medo que ele estrague nosso trabalho de amanhã por causa de sua incapacidade em lidar com nossas condições. Acho que você fará o assalto no lugar dele, Coveiro, para o Baixinho não estragar com tudo. Há algumas horas esse maluco estava para nos abandonar com minha irmã. – Carraspana explicou.
- Não foi nada disso chefe. – Começou o Baixinho. – Nós íamos nos casar. Eu a amo, só isso. Meu irmão é pastor e faria o casamento. Seria muito discreto.
- Discreto? Vinte e cindo mil pratas é dinheiro demais para uma cerimônia discreta. Não acha? – Carraspana questionou apontando para uma maleta aberta no chão cheia de dinheiro.
- Os vinte e cinco mil são para o meu irmão. Sua igreja foi incendiada com o resto de nossa família miserável por um grupo de satânicos radicais da cidade.
- Deveriam enforcar esses anticristos malditos! Imaginem só: não passam de umas crianças que não sabem se chapar por falta de laço de seus malditos pais gigolôs e mães prostitutas! – Loiro comentou lendo seu jornal sentado no sofá com as pernas cruzadas como uma mulher.
- Entendo. – Assentiu Carraspana. – E as outras malas são para passar a lua de mel em Las Vegas?
- Por favor, chefe! Camila está grávida e nós nos amamos!
- Claro que sim. E vocês querem fugir.
- Não, chefe. Claro que não. Você não está entendo. – Baixinho disse distribuindo as cartas.
Esse comentário irritou Carraspana que acendeu um cigarro e o tragou com a expressão franzida de forma impaciente.
- Entenda você! – Carraspana ordenou olhando para as cartas em suas mãos. Não havia jogo nenhum e certamente perderia de novo. – A policia está na nossa cola. Não podemos sair do esconderijo. Eu dou graças a Deus por estar sentado em uma mesa de pôquer cheia de pó com meus amigos invés de uma cadeira elétrica em um chiqueiro nojento cheio de porcos nojentos fazendo churrasco com minha carne nojenta. Você é um ingrato! – Carraspana comprou mais uma carta, isso não melhorou seu jogo e o deixou mais irritado. – E se um moleque do Eddie Mata o pegasse? Faz idéia do que fariam com você?
- Me matar? – Baixinho debochou.
- Não antes de fazê-lo cantar e nos matarem também. Compreende? – Perguntou Carraspana com a expressão severa.
- Não estamos na zona dele. – Baixinho replicou.
- Está brincando ou és idiota, Baixinho? – Perguntou Loiro virando a página do jornal. – Toda essa maldita cidade fedorenta é dele: os traficantes, os guardas, prostitutas e até os mendigos! Talvez você também seja uma de suas cafetinas, assim Eddie Mata o ajudaria com a lua de mel, não?
- Não. Não acredito que vocês pensam uma coisa dessas! – Baixinho ficou nervoso. – Vocês estão muito errados!
- Errado está você em nos dar motivos para pensar, Baixinho! – Carraspana trocou duas cartas, ainda sem jogo apostou mais algumas fichas. – Nossa posição de respirar nessa cidade está muito delicada. E você arrisca demais. Só podem existir duas razões: Você é muito burro ou um rato do Eddie Mata.
- Eu sou burro, chefe. Mas não sou nenhum rato!
- Você é um ingrato!
- Não, chefe. Eu sou muito grato a você. Você é meu senhor, e eu amo a sua irmã.
- Você perdeu a fé, meu irmão – Lamentou Carraspana triste. – e partiu o meu coração. - Comprou mais três cartas e ainda nada de jogo. – Precisamos de só mais alguns dias para sair desse buraco. E você quase fode com tudo! Não posso confiar mais em você.
Carraspana apostou todas suas fichas. O Baixinho agora estava quieto e batendo seus dentes, completamente paralisado pelo medo.
- É melhor você cobrir essa aposta! - Carraspana ordenou se babando.
Baixinho pagou para ver e deitou seu par de três de espadas na mesa e quando viu as cartas do Carraspana , ficou apavorado e começou a bater os dentes com mais força.
- Você ganhou. Pode pegar tudo. - Carraspana falou com muito companheirismo e verdadeira boa vontade. – Vamos partir da cidade amanhã!
Quando o Baixinho esticou a mão encima das fichas, Carraspana esticou o braço levantando da cadeira até quase tocar o teto com uma faca de churrasco e com um golpe prendeu a mão do Baixinho à mesa. Baixinho gritou.
- Você me magoou. – Carraspana falou com cansaço enquanto apagava o cigarro no ouvido do Baixinho.
Baixinho começou a chorar. Loiro largou o jornal e se levantou segurando sua bereta. Coveiro continuou em pé parado no mesmo lugar com o mesmo sorriso que usara ao entrar. Carraspana puxou a faca para cima desprendendo-a da mesa. Baixinho gritou novamente e se atirou no chão.
Agora a porta de madeira abriu. Uma mulher pequena, loira, magra e que seria muito bonita se não fosse pela cicatriz de queimadura em todo o pescoço entrou correndo e chorando se atirou encima do condenado e abraçou-o.
- Essa é a minha irmã. Camila, Coveiro; Coveiro, Camila. – Carraspana apresentou-os.
- Calma, chefe! – Baixinho implorava.
- Eu estou calmo. – Afirmou. – Coveiro, mande esse dois infelizes para o inferno!
Coveiro sacou o 38 da bunda e apontou para o sr. e sra. Infelizes.
- Você está louco? O que está fazendo? – Camila gritou confusa.
- Mostrando para vocês o que é uma cerimônia discreta! – Carraspana respondeu. - Agora os declaro marido e mulher – Pronunciou. Depois se dirigindo ao Coveiro. – Pode matar a noiva.
Coveiro atirou na cabeça, ela morreu abraçada ao marido e o rapaz continuou segurando-a.
- E o noivo. – Carraspana acrescentou.
Outro tiro na cabeça, dessa vez foi no Baixinho. Carraspana retirou seu cigarro do ouvido do morto, desamassou, acendeu, tragou e disse:
- Eu sempre choro em casamentos.

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